Da pele ao pó
Dentre todos os mitos romanos, talvez o mais singelo e pungente seja aquele que reconta o nascimento da pintura. A lenda, narrada por Plínio, remete a uma jovem dama coríntia que traçou na parede o contorno da sombra de seu amante antes de ele partir para a guerra: no ambiente escuro, a luz de uma lamparina fez projetar a silhueta daquele rosto masculino, eternizado pela linha imprecisa. Seja pela dramaticidade evocada ou pela técnica empregada, a lenda de Plínio mostra-se uma metáfora fértil para adentrarmos a produção de Wagner Costa: entre pinturas e gravuras, vídeos e instalações, o artista parte de exercícios de autorrepresentação para alcançar expressões visuais de fragmentação e destruição. A exposição Da pele ao pó — primeira individual do artista na Galeria Mamute — começou a ser concebida em 2019 durante uma temporada de estudos na Academia de Arte Clássica de Florença (Itália) e intensificou-se nos últimos dois anos no Atelier de Gravura da Fundação Iberê Camargo, onde Wagner concebeu obras na prensa que pertenceu ao mestre gaúcho. Entre o disforme e o aforme, as quatro grandes pinturas presentes na exposição resultam da relação direta do corpo do artista com a superfície branca: Wagner performa diante do papel e registra com carvão e pastel seus movimentos sobrepostos. Cada posição capturada é índice de sua presença naquele passado, a memória do gesto vai sendo sedimentada e o acúmulo de camadas remete sempre à encenação primeira — solitária, ritualística. Nesta série de obras, o movimento não é apenas sugestão, insinuação ou representação: a coreografia transmuta-se em pintura, e o resultado é uma soma quase abstrata de faturas. Da pele ao pó reflete sobre o efêmero: um dos pontos de partida da mostra foram as esculturas de Antonio Canova, produzidas no século XIX e arruinadas durante a 1ª Grande Guerra. A harmonia apolínea dos personagens em gesso foi desfigurada pelas bombas, a perfeição neoclássica deu lugar a figuras grotescas — uma mimese dos corpos dilacerados pela tragédia. Na série Ausência, Wagner faz uso da prensa para criar relevos a partir de suas próprias silhuetas recortadas na matriz: essas gravuras cegas ganham um caráter quase-escultórico, onde a incidência da luz altera a experiência da recepção — ora veem-se corpos, ora veem-se chamas. As obras de Wagner Costa parecem mostrar-se em câmera lenta, conjugando sombras e frames, fragmentos e silhuetas. Avançar lentamente é uma forma poética de voltar-se para o eu, com a inegável certeza de que esta124mos, agora, em algum ponto do percurso que nos leva da pele ao pó: como tentativa de frear esse embate, a imagem marca a ausência com uma presença.
Especialista em Estudos Curatoriais e Arte Contemporânea
pela Universidade de Lisboa.
Exposição "Da pele ao pó" na Galeria de Arte Mamute:
Em Da pele ao pó, o artista nos leva a um mergulho em seu universo criativo. Na entrada da mostra, somos absorvidos pela grande vídeo-projeção “Passagem”, que se estende sobre o hall e escadarias, composta de sons e imagens oriundas de seu processo de trabalho no atelier. Antecedendo a sala principal, nos deparamos com “Aceno”, gravuras dispostas perpendicularmente lado a lado, com fragmentos do corpo do artista. Na sequencia, nosso eixo visual é conduzido para “Pó”, obra com contornos corporais posicionados próximo ao chão. Em outro ponto, vemos as gravuras cegas da série Ausência, com relevos escultóricos. Adiante “Corpo”, quatro grandes pinturas a seco em escala humana, à pastel e carvão, retratando a relação direta do corpo do artista no embate com a superfície do papel. A seguir, retorna à série Pele, com “Flor da pele”, fragmentos corporais em tons carnosos, expostos em lâminas de vidro. Da porta de entrada de uma pequena sala, “Partícula”, video-projeção que se espalha sobre o teto aparente, revelando memórias de partículas de pó que pairam por instantes no ar e se depositam no solo. Em local oposto a este, em uma sala plena de luz, sob uma grande plataforma de mármore estão “Pele” e “Pó”, livros de artista com capa de mármore e interior em gravuras, os quais podemos tocar e manusear, momento especial de interação com a materialidade da poética Da pele ao pó.
A OBRA | W. COSTA- Artista Visual